Ambulatório trans contribui para construção da identidade dos usuários

Atendimento especializado chega, neste mês de março, a um ano e quatro meses de funcionamento na capital

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No Ambulatório trans Anyky Lima, usuárias e usuários exercem plenamente sua cidadania
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O Ambulatório de Saúde Integral da população de travestis e transexuais, mais conhecido como Ambulatório Trans Anyky Lima, no interior do Ambulatório de Dermatologia e Infectologia do Hospital Eduardo de Menezes (HEM), da Rede Fhemig, realizou, em apenas um ano, quase 2 mil consultas, envolvendo mais de 200 pessoas. O trabalho desenvolvido pelos profissionais da equipe multidisciplinar do ambulatório trans, no atendimento a moradores vindos de oito regiões do estado, tem contribuído para transformar a realidade não apenas das pessoas, mas da rede de saúde.

O porteiro Sassá e a lista com os nomes sociais (Crédito: Divulgação/Fhemig)

Transformação, não por acaso, parece ser a palavra de ordem no ambulatório trans. Da portaria ao atendimento dos médicos residentes, o respeito às diferenças e à inclusão estão presentes na unidade que, de acordo com a Fhemig, também orienta na materialização de desejos, sonhos e direitos fundamentais de saúde, autoafirmação e felicidade das pessoas que buscam o serviço.

O primeiro contato de quem vai ao ambulatório é com o porteiro Vitalino Rocha (o Sassá), de 64 anos, que trabalha há quase três décadas no HEM. É dele a missão de recebe os usuários que, semanalmente, se apresentam à portaria.

“Eu sei que, em certos lugares, eles não são bem tratados, mas eles não merecem ser desprezados. Eu recebo eles toda quinta-feira e encaminho com carinho. A Andreia (psicóloga do ambulatório) até me elogia”, afirma.

Cuidadoso, Sassá orienta os outros porteiros sobre a forma adequada de abordar os usuários, tendo em vista o nome social, adotado pela Fhemig desde março de 2018.

Histórias de vida como a do estudante de sociologia Dan Sousa, de 30 anos, fazem parte do cotidiano do ambulatório trans. Usuário do serviço há seis meses, Dan deu início ao processo de hormonização no início do ano. Sua felicidade é evidente.

“Cheguei aqui me sentindo frágil. Comecei a estabelecer um círculo social quando iniciei meu tratamento. A partir daqui, fiz amizades. Por mais que eu fantasiasse um atendimento humanizado, o que encontrei aqui superou todas as minhas expectativas. O ambulatório trans me mostrou o quanto eu tinha o direito de ser feliz”, conta.

Dan Sousa exibe sua receita para o início do processo de hormonização (Crédito: Divulgação/Fhemig)

O futuro cientista social afirma que o fato de ter experimentado um ambiente que estava pronto para ele permitiu que criasse ambiente similar em seus outros núcleos de convivência, como a família e o trabalho. “Eu vivi por 21 anos uma feminilidade compulsória. O ambulatório foi um divisor de águas na minha vida. O mundo trans começou a acontecer para mim, de forma efetiva, aqui no ambulatório”, revela.

Segunda casa

Algo semelhante experimenta a estudante de pedagogia, professora do ensino fundamental e atriz, Nara Costa, de 24 anos. Ela frequenta o ambulatório e faz hormonização há um ano. Moradora do interior de Minas, é a primeira e única professora trans de sua cidade, que tem pouco mais de 8 mil habitantes. Aos 19 anos, decidiu se hormonizar e saiu em busca de informação sobre o processo transexualizador.

Nara realiza uma jornada de 12 horas de viagem para vir às consultas, e costuma chegar três dias antes para se precaver de quaisquer imprevistos. “Tudo mudou na minha vida quando passei a frequentar o ambulatório. Hoje, sei dos meus direitos e como exercê-los. O ambulatório é minha segunda casa, e todos aqui são minha família. Quando você não está acostumada com gentileza, e passa a ser tratada com gentileza, é muito bom. É o que acontece aqui”, assegura.

A professora conta que, antes de frequentar o ambulatório trans, sua autoestima era frágil. Com o início do tratamento, ela tem conquistado espaços e alcançado crescimento.

“O ambulatório me ajuda a saber lidar com situações de discriminação e a ser quem eu sou. Aqui formei uma rede de referência”, revela Nara, que atua como uma espécie de multiplicadora de informações sobre o ambulatório trans em sua cidade e na região onde mora.

Empatia

Atuando há dois anos no HEM, e há pouco mais de um ano no ambulatório trans, o médico endocrinologista Eduardo Mundim afirma que a riqueza das histórias de vida dos usuários é imensa.

Nara Costa e o médico Eduardo Mundim (Crédito: Divulgação/Fhemig)

“Perceber a revolta e a dor daqueles que foram, e são, massacrados pela família, entristece e gera também revolta. Perceber a resiliência de muitos, que conseguem, apesar das dificuldades, cavar, com esforço e atenção, seu lugar como pessoas trans junto às suas famílias, é uma lição de vida”, salienta o médico.

Eduardo revela que, quando surgiu a possibilidade de instalação do ambulatório trans no Hospital Eduardo de Menezes, tinha certa resistência com a temática e, então, se dedicou a uma intensa pesquisa bibliográfica sobre o assunto. “Houve um longo processo para que eu pudesse aceitar o trabalho, que se iniciou com meu envolvimento com bioética e que me fez conhecer outras possibilidades éticas”, observa.

Com a criação do serviço, em 2017, a teoria se tornou realidade e fez com que o médico superasse o preconceito inicial. “Outros conhecimentos foram agregados, trazidos pela militância trans/LGBT, como a questão do gênero. Os meus preconceitos foram confrontados com a história de cada pessoa que ouvia; histórias de não adaptação ao corpo e às suas exigências, de incapacidade de ser feliz com o papel social esperado”, ressalta.

Segundo o endocrinologista, para atuar no ambulatório trans, não é necessário aceitar a ideia que gênero é apenas uma construção social, “mas é necessário a compreensão de que gênero também é construção social. Trabalhar no ambulatório trans significa trazer essa informação para a atualidade, reformulá-la pelas novas contribuições positivas e negativas, e usá-la como ferramenta para decisões clínicas que dizem respeito à saúde, às integridades física e psicológica, à felicidade de outras pessoas. O conceito de doença e a definição de qual é o papel da pessoa que exerce medicina também são reconfigurados”, assegura Eduardo.

Mútuo aprendizado

Referência técnica do ambulatório trans, a psicóloga e doutora em psicologia, Andreia Resende, conta que, a cada abraço, no início e no fim dos atendimentos, se sente uma pessoa melhor, “por poder proporcionar o que, de fato, é direito dos usuários do serviço. Acredito que a aprendizagem é mútua, a cada atendimento, aprendo muito com eles e elas”, afirma.

Com seu envolvimento em pesquisa e sua prática no ambulatório trans, Andreia se capacitou a realizar treinamentos destinados a profissionais que atuam na atenção à população de LGBTs. 

“A minha aposta durante os treinamentos é que a assistência à saúde da população de trangêneros ainda apresenta necessidade de qualificação que, se respondida a contento, contribuirá para a construção de um projeto de saúde pública equânime, integral, inclusivo, humano e sensível às diferenças”, aponta a psicóloga que, em 2018, abordou questões de gênero em sua tese.

De acordo com a pesquisadora, a temática da diversidade de gênero e da orientação sexual apresenta muitas capilaridades. Ela afirma que acompanha os esforços das pessoas que buscam o serviço, e que é notório o progresso que elas alcançam com o acompanhamento no ambulatório trans.

“Cada relato é uma retomada de suas capacidades, de autonomia, de melhor qualidade de vida, mais felicidade e aceitação no campo social, isso, para mim, é muito gratificante. A cada dia de trabalho, saio mais resiliente”, finaliza Andreia.



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